segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Pra que lado?

Rafael Massena

Meu teto preto
Arranha o céu 
De saudade

Na metade, no meio 
A cruz indica que caminho
É em qualquer direção

Pros lados, igual
Pra cima, curto
Pra baixo, fácil

Aos sinais de dona Têta

Um beijo que bate na trave
Pode ser um acidente

Um abraço interminável
Uma saudade amigável

Um cruzar de olhares pidões
Não é mais que um desejo reprimido

Um esbarrar sem querer querendo
Começa a dar bandeira

Um grito desesperado de socorro
Que insulta e estimula

A alça escorrendo pelo braço
Provoca suspiros e uma leve ereção

Vontade
Saudade

O tremelique de seus pés
Indica reciprocidade

Sua gargalhada chama a minha
O sorriso acanhado sublinha

Ela pede mais dois chopes
Não quer que eu vá embora

As horas passam em frações de segundos
Ritmando o encontro de dois mundos

A pausa diz mais que semibreves
Mas o medo emenda em outro assunto

No final da noite, seguimos

Cada um no seu rumo.

domingo, 29 de setembro de 2013

Antologia andança

Rafael Massena

Eu sou Deus e ando
Com o diabo no corpo
Ninguém acredita

Sobre copos e abelhas

Rafael Massena

Liberdade é bom 
E eu gosto
Mas é circunstancial

Uma abelha, presa em um copo
Está livre
Dentro do copo

Conectados, somos livres
Confiantes, somos copos
Descrentes, somos abelhas

Presas em nossos próprios copos

sábado, 28 de setembro de 2013

O rei do carnaval

Rafael Massena


Sob os holofotes da avenida
No meio da multidão
O gari que a rua varria
Vira rei, sensação

Desfila com mulatas
Sorridente e com moral
E desde março junta latas
Alegorias de carnaval

Sabe lá quem saiba sambar
Quem não trema com a pressão
Dos tambores da escola

Mas mulata que rebola
Com gingado e precisão
Essa sim é pra casar

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Cinco minutos de farra

Rafael Massena


Era cinco pras nove quando começamos 
A nos divertir 
Vendo lá embaixo nove pombos 
Brigando por cinco pedaços de pão 

Rimos por cinco minutos até 
Nos assustarmos, já eram nove 
Quando lá embaixo chegamos 
Não havia mais nada

Nem pão 
Nem pombo
Nem nada

Praia em família

Cabe ainda no olhar mais um sorriso. Mais um carinho
Antes que a derradeira lágrima se jogue
Antes que o seu amor retorne
Apenas pra gravar na memória essa lembrança tão doce
Antes fosse domingo e pudéssemos ficar mais
Um tanto mais teríamos de silêcio e brisa.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Mais um amor passageiro

Ai... e esse avião que não chega,
Trazendo a bordo outro avião.
Saio nas ruas e não há quem não perceba
Minha felicidade e aflição.
E apesar da minha experiência e idade
É impossível conter a inocência da minha ansiedade.

No aeroporto, de um lado pro outro, o passo torto
Incapaz de esconder meu nervosismo
Traz à tona o cinismo de um coração semimorto.
E na contramão eleva em si o heroísmo
De num abismo saltar inconsequente
À luz refletida do pássaro reluzente.

Que turbilhão de emoções que se desperta
Quando aterrisa no pátio a aeronave comercial
E sai radiante, a primeira, da porta aberta,
Minha companheira pra pular o carnaval
Mas sua pequena bagagem de mão
Não escondia que viera apenas para o verão.

O conto de fadas, então, dava lugar à realidade,
À mais pura verdade daquele ser,
Que teria vindo pra conhecer a cidade
E que não veria o nosso amor florescer
Volto à realidade e visto a minha cara de mau
Pois esse filme eu já vi, vivi e eu morro no final.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Poema do fundo do peito

Cá estou, peito aberto para novas cicatrizes.
Nem lembro o meu último arranhão.
Pode ter sido um infinito em pichação
Ou um romance vivido por personagens,
Enredado entre monstros e viagens
E encenado por atores e atrizes.

Pouco importa de onde partirá a bala.
Meu peito estufado já não fraqueja.
Por mais esperto ou tolo que seja,
Sabe ao certo que um novo ferimento
É sempre um estalo, um estar atento,
Ao que vem, incomoda e cala.

Então se dói, por que volta a se estufar?
Pode o peito despir o olhar semimorto
E calar o mais belo e cult verso torto?
Pode ainda empinar-se ao sentir medo,
Arrepiado dos pés ao cabelo?
E se erra? Morte? Corpo ao mar?

Ainda que sim, o peito não liga.
Venham tanques, aviões e escopetas!
Atirem! Acertem-me em meio às tetas!
A morte é a simples consequência do tentar
E não conseguir. É o dia seguinte do amar.
Sua maior viagem é estar acima da barriga.
Peito que é peito não liga.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O silêncio é a palavra que resolve se calar

Certa vez achei que a função da palavra era comunicar.
Mais que isso, cada palavra vinha com a missão de se fazer apaixonar.
Cada verbo tinha um destino, pelo menos na cabeça do menino,
Que era a menina a quem queria conquistar.
Todas as frases eram ouvidas e a resposta era o abraço de dois argumentos.
Ok. Havia momentos e momentos. Mas em meio às pausas vinham rajadas.
Turbilhões de ideias embaralhadas se emaranhavam na mente afoita dos jovens
Enquanto bradavam o desejo de se juntar e criar estórias de amor.
O “amor” nessa época era um termo onipresente.

Pouco tempo depois a palavra ganhou uma nova patente.
E eram tão veementes os pedidos que o perdão ganhou sentido.
Nenhum erro passava batido e as desculpas eram logo percebidas,
Sempre precedidas de longos debates acerca das gafes cometidas.
Nossa! Quantas palavras foram ditas nessa época...
A luz das velas na mesa mal era sentida tal era a verborragia dos encontros.
O vinho dava passagem ao beijo, que era interrompido pelo sorriso,
Que dava lugar às declarações de amor.
Eram cheias de calor as interjeições daquelas noites.

Passado esse momento de euforia, achei que era o insulto a função que ela exercia.
Afinal, as línguas afiadas destilavam diariamente o descontentamento do casal.
E sem alforria ficavam engasgados os velhos elogios, reféns da raiva e da impaciência.
Não era demência o problema matinal, mas uma disputa acirrada pela última palavra.
Quem desferiria o golpe final? Quem traria no peito a marca tipografada?
Começou a ser muito comum a utilização dos provérbios. Nem todos sérios,
Mas sempre com a função de calar, sentenciar, satirizar, alfinetar.

Após algum tempo, tudo já posto em seu devido lugar,
A palavra tirou férias e pôs o silêncio pra comandar.
Era como se aquele casal tivesse regredido e voltado para o gestual.
O bom dia, a declaração de amor, o elogio, nada disso era mais natural.
A vida em tons acinzentados começava a se tornar normal
E todas as palavras daquela casa eram as impressas em jornal.

Tão insustentável ficou a relação
Que um dos dois decidiu terminar a união,
Levando consigo toda a narrativa dos dois.
Só muito tempo depois viria o recado para com palavras se desculpar:

“Eu te amo, sempre te amei e pra sempre vou te amar”.

Pra não acabar em pizza

Rafael Massena

Subi as escadas da imaginação
Mas esqueci de um pequeno detalhe
Então desci para buscá-lo
Deparei-me com algo que não havia reparado
Precisei tocá-lo para saber se era real
Em parte, era
Mas não como havia imaginado
Olhando de perto
Nem tudo é como parece
No topo esperavam meus pais
E do alto gritavam para eu subir
Não dei ouvidos
Lá embaixo era muito mais interessante
Até que cansei e subi novamente
Eles me pegaram pelas mãos
Atravessamos a rua
E então tomamos sorvete
Eram tantos os sabores que fiquei em dúvida
Acabei escolhendo qualquer um
E estava bom
Sorvete é como pizza
Sorvete é sempre bom

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Eram quatro, um foi embora

Rafael Massena

No banco da praça
Sempre tem alguém querendo 
Receber conselhos

Pausa

O poeta das plácidas poesias petrificadas
Não mais prescreve pílulas apaixonadas.
Não mais por prazer.
Em pleonasmo, tal profeta de profecias paradoxais
Paira sobre a poeira plástica do palacete
Como pipa impaciente.
Partindo do princípio da passividade total,
Pende prostrado do parapeito polido
Para planar como pluma em perpétuo apelo
Por palavras perfeitas e não perecíveis.
Paga o pato da pequena espera. 
Aproveita-se das partículas de pensamento em precipício.
Passa por pombas a peregrinar pelo ar
Pedindo paz aos protestantes como padres.
Perde-se em pensamentos putrefatos,
Pseudoplanos psiquiátricos...
Purifica-os e pede passagem,
Pousando como pousa a pedra pontiaguda,
Perfurando o piso sob os pés dos pecadores.
Pinta a parede respingada,
Resplandece em poça, sem pulsação.
Pasmas e entre passos apressados, 
As pessoas se perguntam os porquês
Da partida antecipada. É uma pena.
Mas o ponto é o predicado da palavra.

domingo, 22 de setembro de 2013

Só as avós são felizes

Rafael Massena

Todos os dias 
Vou ao mesmo café
Peço coisas diferentes 
E nunca lembro o que pedi 
No dia anterior

Todos os dias 
Eu a vejo 
Me olhando 
Imaginando 
O que eu tenho a dizer 

Nunca havia dito nada 
Até que um dia 
Perguntei 
Por que a cara emburrada? 
Ela então sorriu.

De noite sem cama

Rafael Massena


Vaga em seu passo lento 
Pela noite lenta
Até virar dia

A vida lhe fechou as portas
Duas horas atrás

Mas segue em seu passo lento
Pela noite fria
Até virar lenda

Um dia 
Ele ainda arrebenta

sábado, 21 de setembro de 2013

É sempre a mesma história

Faz parte do serviço
Varrer a poeira cortante
Dos cacos
Dos corações
Dilacerados

Órgãos partidos 
De vidro vermelho
Choram o fim do flerte

Com a pá dos problemas
Ensaco a tristeza
De sentimentos reciclados
Separados 
De acordo com a estação

No verão, pré carnaval
É mais frequente
A sujeira ensanguentada no quintal.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Passa boi passa boiada pela minha portaria

Pessoas passam
E se passam
Por pessoas

Seus passos
Apressados
Já passaram

São passado.

Contemplação estática

Felizes janelas
Que apenas admiram
O desfile delas.

Da portaria não vê-se o mar

Deita o marujo sob a luz do luar
Escondendo seus olhos das estrelas e do mar
Estende os braços, repousa as pernas
E deixa às velas o trabalho de navegar

É impossível não pensar nos erros cometidos
E nas sereias, com seus lindos vestidos
Que o enfeitiçaram com canções de toda sorte
Perdendo a razão, o norte e seus sentidos

Quantas escolhas erradas o levaram à costa
Quantas mudanças de rumo em resposta
Às intempéries do tempo e do trago
Reflete espantado que do barco ainda gosta

E como pudera ser diferente, na embarcação de sua vida
Conseguira morada, trabalho e comida
Onde se escondeu da perversidade humana
Que como uma chama fora tão atrevida

Acorda o marujo com o bom dia do sol
Prepara desanimado a isca e o anzol
E espanta-se em ver ao longe
Sobre um monte, um lindo farol

Seria merecedor de tão bela visão matinal?
Nunca vira antes um farol de sua nau
Poderia atracar, ser feliz, ter paz e calma
Poderia limpar sua alma do suor e do sal

Mas a chegada poderia muito bem ser o seu fim
A jornada do navegante errante não acabaria assim
Não deixaria ao acaso, mesmo que de passagem
O desfecho de uma viagem que não era de todo ruim

Queria ele ser o mestre de seu próprio destino
Manejar o leme e o manche com seu corpo franzino
Ver novas paisagens, respirar novos ares
E chegar nos lindos lugares que sonhara enquanto menino

Então o fez, manobrando seu barco como uma dança
Com jeito de cigano e inocência de criança
Conduziu seu barco para a próxima aventura
Levando consigo a ternura do farol como lembrança.

Macroambiente

A noite solitária da cidade parece aumentar 
Ainda mais a cultura do isolamento.
E, mesmo que por um momento, ousemos questionar
A apatia dos nossos irmãos de confinamento,
Ouvindo calados os berros silenciados de liberdade
Que desprendem-se da intimidade gutural dos letrados,
Nossa própria apatia nos angustia perante a sociedade
E nos denuncia como tolos rejeitados.
Incapacitados de viver a normalidade do momento,
Inebriados de tanta culpa, discórdia e disputa.
É uma pena sermos apenas 99%
E termos governantes tão cretinos.

Hoje é dia do mestre, mas não sei que dia é hoje

Dia desses tava os dois meninos aqui embaixo tocando pandeiro. O José Rafael, filho da dona Judith e o Waldo do 503. O menino queria uma bateria de presente. Acabou ganhando um pandeiro. Aí o Waldo foi dar umas dicas. Eu tava só ouvindo.

um     dois     um     dois     um
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum zirigui... merda!

ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum zi... MERDA!

ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum zirigui
ZIRIGUIDUM!

- Só dá trabalho no início. Daqui a pouco você pega o jeito.
- Mas eu gosto de rock!
- Hoje a aula é de samba.
- Mas eu não gosto de samba!
- Aprende. Não é difícil. Se você não gostar, não usa.
- Mas se eu não vou usar pra nada, pra que aprender?
- Porque se o rock não der certo, você toca samba. Afinal de contas,
esse é o país do carnaval.
- Mas eu sou foda! Vou ser uma estrela do rock.
- Se você é tão foda assim por que sou eu que tô dando a aula?
- Mas você é foda também.
- Então ouve o que eu tô te falando. Eu sou foda também.
- Tá.
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum

ziriguidum

ziriguidum

ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum ziriguidum ziriguidum ziriguidum
ziriguidum

dumdum

dum

ziriguidum

Se não der certo no rock, o menino até leva jeito pro samba. "Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza". E ele ainda não conhece a tristeza.

Ao ano passado

Feliz ano velho
Que o ano que passou 
Tenha sido tão bom pra você 
Quanto foi pra mim

Que tenha te ensinado 
Tanto como me ensinou
E que sirva de alicerce 
Para um ano melhor

Onde nele possa relembrar 
Toda a delícia do momento passado
E sorrir das lágrimas derramadas

Caso o agora ainda molhe 
Com chuvas de verão
Que o outono lhe traga paz.

Dois dias depois de Ananda

Nessa quarta feira cinza
Dedico às cinzas
uma oração

Cinzeiro no chão 
Copo na mão 
Indecisão 

O cigarro 
Filtro branco com bolota 
Suavemente desbota 
O branco de cinza 
E pinta a parede 
De insatisfação 

tédio confronta 
A folia resquiciosa
E endossa o desejo 
De já se deitar. 
Em pleno conforto do lar 
Almejo um beijo doce curioso 

Pidão por mais um dia de folia 
No meu estado 
No máximo um beijo na testa

Ainda assim 
A oração é verdadeira 

Não que seja pura 
Na fissura derradeira 
De ferozmente te atacar 
Com cisos e molares

Vontades escolares da mente. 
Namasté, Niterói 
Icaraí não é logo ali.

Canalha

Ela só tinha vinte anos...
E ainda por cima gostava de meninas.
Levei pra passear por todas as esquinas
Mas no fim eram falhos os meus planos.

Ofereci-me por inteiro, com o que tinha de melhor.
Banquei passagem, hospedagem, jantares,
Mas não foi além da simples troca de olhares
O que eu esperava que terminasse em suor

Que desperdício de orgasmos aquela viagem
Eu, que tinha levado tanta camisinha na bagagem,
Acabei posando de amigo

Mas teve uma noite que valeu a pena
Fomos tudo e mais um pouco naquela cena
Que começou com um carinho no umbigo.

Aos versos que troquei com Mariana, tão formosa dama

Lembro-me ainda hoje, como se tivesse sido ontem, da primeira vez que me notou. Seus olhos claros, ora transparentes ora tão misteriosos, pareciam-me enxergar a alma, tão sem mistérios, tão transparente a esses mesmos olhos. Mal pontuei a poesia que acabara de ler e fui abruptamente interrompido por seus lindos e delicados lábios, a solicitar em desafio uma continuação. Tomado por uma miscigenação indescritível de sentimentos, continuei.

O frio na barriga e a voz trêmula pareciam em muito aumentar a dramaticidade do texto, mas o sorriso desconcertado e a timidez escancarada adicionavam um tempero inesperado, involuntário e descontraído à leitura. Ao final, ela se aproximou e sua voz rouca e suave novamente ronronou elogios doces, carregados de sinceridade e uma admiração recém adquirida.

Talvez tenham sidos os elogios mais sinceros que já recebi – independentemente se o foram ou não – pois não vinham de sua boca deliciosa, mas de seu penetrante olhar que me perfurava o peito, ainda que apontado para cima. Começamos a conversar e então foi sua vez de me acariciar ao pé do ouvido com versos que, não apenas me enfeitiçaram, como credenciaram os chamegos anteriormente respaldados apenas por sua beleza exótica e indiscutível.

E era, de fato, indiscutível a sua beleza: magra, alta, com um lindo sorriso e portadora de um corpo escultural, realçado por longos e cacheados cabelos negros – e não esqueçamos os incríveis olhos claros. Não somente os atributos físicos, era gentil, simpática, delicada, inteligente. Tinha os modos de uma dama e a sensualidade vulcânica de uma odalisca. Sejamos francos: era muito gostosa, em todos os sentidos que a sinestesia linguística permitir.

Não queria outra coisa naquele momento senão seu gosto em meus lábios, seu cheiro em meu travesseiro, seu corpo no meu, seus sons no meu ouvido e a simples visão do que parecia miragem. Em contrapartida, poderia oferecer-lhe meu corpo roçando contra o dela, meus gemidos de prazer e minha boca entre suas pernas. Seus olhos poderiam estar fechados e seu olfato perderia-se entre velas aromatizadas, incensos e suor.


Se há um Deus nesse mundo, fora Ele muito gentil com essa menina e um tanto desumano comigo, colocando em meu caminho pérolas e me fazendo porco. Por que, Deus, em toda a perfeição e complexidade de sua criação, inventaste a lésbica? Corrijo-me: se há um Deus nesse mundo, esse Deus é ela. Eu sou mero São Pedro.

El Coco Loco

     Foco...

Alquimia fria de transformar em belo tudo o que toco
Super poder transformador dos heróis do dia a dia
Que promove mutações de ansiedade em alegria

     Sufoco...

Ingrata companhia que no foco dá um toco
Precipitação nervosa das pressões da cidade
Que nos tira a alegria e devolve a ansiedade

     Oco...

Ansiedade

Primeiro de novembro
Outubro lento
Parado eu lembro
Como o novembro
Demorou a chegar

Três dias a mais
Correndo atrás
Do sagaz novembro
De passo intenso
Que me passa pra trás

À passeio
Pousa um pássaro pentelho
Que me bica o calcanhar.

Máquina

A máquina de lavar, essa sim, é realmente uma máquina extraordinária. Poderia muito bem ser uma máquina de pular ou uma máquina de girar. Quem sabe uma máquina de limpar ou até mesmo uma máquina de molhar, de misturar, de ensaboar. Seu nome completo, máquina de lavar roupas, certamente não faz jus à imensidão de tarefas que ela é capaz de executar. Tolos são os homens que as utilizam apenas para lavar. Ainda mais o são aqueles que a usam exclusivamente para lavar roupas. Estes nunca conseguirão valorizar precisamente os livros em suas estantes, presos a suas capas ou, quem sabe, apenas aos títulos. Imaginação não é para os fracos. Tem que estar distraído para perceber as nuances dos objetos e suas objeções.

Noite esfomeada

Na salada da noite
Todos os gatos
São pratos

Churrasco de galo
A vaca pisca o farol
Alerta os vizinhos

Cancela se abre
Não deixa entrar
Um só suspiro.